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Explosão e ruína

PANIDROM e Pequeno Quadro Público exploram a potência dos corpos erguida como máquina de guerra sobre as delimitações do espaço

por Maria Bogado

 

 

  Desde aquele mês de junho tem um ruído estranho inscrito nas ruas do Rio, uma inquietação inscrita nos corpos. Muito do que se desencadeou ali como processo político ainda está por vir e, sobretudo, aguarda urgentes formulações, tem múltiplos sentidos a serem disputados. Duas peças recentes, estruturalmente muito diferentes entre si, quase em pólos de oposição formal, trazem com muita energia esse eco estremecedor das manifestações. A experiência cotidiana na cidade do Rio de Janeiro insiste em deixar cada vez mais evidentes a imponência dura dos muros que cercam PANIDROM, primeira peça da Cia. Volante, ou mais sutilmente, das retas opressoras que delimitam o quadrado de Pequeno Quadro Público, da Miúda. Contudo, esgarçar esses limites passou a figurar como meta e — o incrível de 2013 — memória física e desejo palpável.

 

  Se o Estado impôs/impõe/sempre imporá um aparato opressivo sobre nossos corpos, e a velha rica dita grande mídia impôs/impõe/sempre imporá a força do seu aparato simbólico, a arte (pobre) se ergue como ponto de escape pelas potências do falso e do performático. Se, de fato, a possibilidade de se manifestar/circular livremente em espaços públicos está, cada vez mais impunemente, nos sendo subtraída, essas peças tem o mérito de agregar e dar vazão, por novas vias e com muito vigor, ao desejo latente de manifestação.

 

  PANIDROM é um passeio por ruínas. Nasce na universidade pública, ruínas; segue afora pelo centro do Rio, ruínas. Pequeno Quadro Público é explosão. Não cabe mais o espetáculo, a pipoca. A pipoca explode, explodimos juntos, os grãos de milho e eu, diante daquela máquina de explodir. Diante daqueles corpos explosivos, diante daquele quadrado que não mais se sustentará, um espectador também débil, manco, com muita dor na perna esquerda. Espectador, contudo, que é convocado à ação. Em PANIDROM uma assembléia se faz e termina súbita. Logo um dos desterrados pergunta algo como: “achou que era só ficar aí sentado? corre! corre!” Levantamos meio sem jeito, atordoados. Nos esbarramos um tanto, mas seguimos com eles, ainda que com os nossos corpos machucados, feridos, tolhidos pelo engarrafamento, pela polícia, pelos preços, pelas balas de borracha, pelo desânimo, por todas as maravilhas da cidade maravilhosa. Mas corremos, corre, corre! Uma música nos embala e, de repente, não somos tão frágeis assim. Somos um corpo coletivo crescente, passantes se aglomeram e, de repente, eu penso que — porra! — parece uma manifestação. De novo. E é. Ouço o som das pedras que a magnífica puta animalesca de PANIDROM joga contra o tapume. O barulho ressoa dias depois na Cia dos Atores no corpo de Pequeno Quadro Público que se joga contra a parede, explosivo, combativo.

 

  O dispositivo de Pequeno Quadro Público é simples. No chão, é traçado um quadrado com fita crepe, que é filmado de cima por uma câmera sempre fixa e tem sua vista aérea projetada. Tudo em perfeita harmonia como nos mapas do google, não fossem os corpos que irrompem sem direção. Humanos. Essa tensão entre o equilíbrio pacífico do quadrado e o trânsito desregrado dos corpos é o ponto de partida para se pensar as relações entre poder e enquadramento, política e desenquadramento. Enquanto somos vigiados por todos os cantos, paradoxalmente, grandes atrocidades permanecem invisíveis. A que nos servem as imagens estáveis e de alta resolução dos helicópteros da velha rica dita grande mídia/dos drones/dos satélites/dos aparatos militares/do google? Controle ou informação? Por outro lado, como escapar da onipresença delas? E o desafio seguido à risca: como produzir novas imagens vivas e dissonantes?

 

  É a dificuldade que encaram com êxito — não sem enorme exaustão e violência — os corpos desses atores naquela pequena sala quase que escondida na escadaria do Selarón. Imagens horizontais, de uma comunidade horizontal. Frente a frente com o espectador. Imagens de corpos dissonantes, que se mascaram diante das imagens verticais do controle, mas se desnudam para nós. Imagens frágeis de tão efêmeras, disformes, passam por nós naquele corre e corre, como numa manifestação. E como numa manifestação, estão sempre na iminência de logo se desfazerem com o próximo empurrão, esbarrão, tropeço ou tiro. Contudo, é essa instabilidade derradeira que nos diz o tempo todo: aqui é corpo, aqui é ser vivo. Essa qualidade performática da imagem é pulsação. Na suas formulações breves e momentâneas, esses corpos atiçam uma força capaz de perfurar qualquer bloco coeso, qualquer linha reta, qualquer imagem fria produzida à distância. São imagens políticas, desestabilizadoras, em ebulição. Convocam ao gesto de desbordar, romper, arrancar todas as delimitações do espaço.

 

  A distopia do universo ficcional de PANIDROM é uma terra seca demais para comportar uma das explosivas afirmações finais de Pequeno Quadro Público: “Não existem mais fronteiras nem filas de imigração, o passaporte vale menos que sua índole.” PANIDROM é uma peça sem lugar, sobre pessoas sem lugar. É teatro sem teatro: acontece na rua. Enquanto Pequeno Quadro Público explora a delimitação extrema e precisa do espaço para operar desbordamentos, PANIDROM faz a operação inversa, os pequenos grupos totalmente dispersos e sem direção, aos poucos se vêem reunidos e, quando menos esperam, enquadrados, todos envolvidos pelos muros altos de PANIDROM. Experimentamos na pele esse ordenamento e agregação quase forçada do disperso, mas é claro que só para sentirmos, depois, a força do reverso: a dispersão final; o abandono dos muros, à despeito do líder ordenador que grita desesperadamente. Durante o percurso de uma vida ou 1Km, uma mulher luta para carregar suas memórias. As memórias — como as casas — serão soterradas. Ela, no entanto, segue com elas, reúne, apesar de todos os percalços do caminho. Lembro da frase com que Adirley Queirós fecha o Branco sai, preto fica, ficção científica de 2014: “Da nossa memória, fabulamos nois mesmos”. PANIDROM recorre à ficção para erguer no real um contradiscurso ao que já está erguido com a força do concreto. Opõe-se ao que nos enrijece e quase imobiliza. O que não pode acontecer no Rio hoje está na barriga daquela grávida que se recusa a ter o seu filho naquela terra seca; está numa peça móvel, estrategicamente nômade. Perfurar os espaços, passar por eles, sempre esperto pra fugir quando for preciso. É tenso, é vivo — e corre!

 

  Enquanto o fora parece cada vez mais insuportável, um campo minado, as peças oferecem uma arma que é nois: o instável arrebatador da vida que é a potência de cada corpo em movimento. É o que permeia todos os detritos do passeio por ruínas dos terrenos áridos de PANIDROM, a rigidez das retas do quadrado, e toca o espectador apesar da merda toda que continua depois dos aplausos. Algo se abala profundamente, eu sinto/sei. Depois das peças, voltar pra casa pensando como traçar novos caminhos errantes, fugidios, incapturáveis por delimitações prévias. Quantas linhas retas e muros delimitam e interditam vizinhanças? Como fugir à perfeição geométrica, embora ascética e desumana dos quadrados caminhos estabelecidos? A assustadora dúvida de talvez não ter realmente saído de PANIDROM, mas uma latência movendo a perna esquerda. Avante!

 

Artigo retirado do site: https://medium.com/revista-beira/explos%C3%A3o-e-ru%C3%ADna-3e0d0135aae

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